quarta-feira, 20 de julho de 2016

As Vinhas Infinitas de Steinbeck

A primeira vez que ouvi falar de John Steinbeck foi assistindo Lost (sim, sei o que é decepção na vida). O personagem Ben fazia uma analogia sinistra entre o que ele vivia naquele momento e a dupla principal de personagens de ‘Of Mice and Men’ (Sobre Ratos e Homens). Esse nome ficou em minha cabeça por muito tempo, até que, lendo na internet uma dessas listas de “maiores clássicos da literatura de língua inglesa”, me deparei com o poderoso título ‘The Grapes of Wrath’ (As Vinhas da Ira). Ao perceber que era de Steinbeck, que há tanto tempo habitava a região nebulosa da minha memória chamada Associações Culturais Razas & Conhecimento Quase Zero Sobre Assuntos Diversos, decidi que este seria o meu passa-tempo nas viagens matinais para o estúdio Mojo em Aracaju, durante as gravações do Alma de Carbono.

Eu só não esperava que fosse ler uma das estórias mais poderosas e bem contadas que um ser humano já foi capaz de criar. Steinbeck nos leva para o seio da família Joad, que é despejada de sua propriedade em Oklahoma pelos banqueiros arrendadores das terras, durante a crise econômica de 29. Com isso, Tom Joad e sua família são forçados a rumar para o oeste em busca de trabalho e dignidade na Califórnia, onde sofrerão uma série de perdas e mudanças profundas na família.

É possível supor que, com sua grafia inovadora e fiel ao falar caipira do meio-oeste americano, e com seus recursos narrativos ~únicos~, Steinbeck transmite as bases de suas principais filosofias sociais, através de seus intrigantes personagens-chave, de uma forma extremamente simbólica e rica.

O agrarianismo jeffersoniano personificado em Grandpa e Pa Joad, avô e pai da família que, destituídos de sua terra, sucumbem a momentos de insegurança e perda da própria identidade; o pragmatismo de Ma Joad (mãe) e Tom Joad (segundo filho), que reagem de forma prática e realista a cada dificuldade que se levanta (em contraponto à religiosidade sistemática, idealista e desconectada de Grandma, a avó) e são os primeiros personagens a ampliar suas noções de família de um conceito nuclear e fechado para uma ideia mais aberta e humanista, em que todos os semelhantes ao seu redor precisam se unir e se amar, principalmente em tempos difíceis, pois são parte de um só espírito superior.

E é exatamente este último aspecto que mais nos remete à ideia do Oversoul de Ralph Waldo Emerson, tão bem encarnada no ex-padre Jim Casy, amigo de Tom que embarca na viagem da família Joad e acaba por se tornar uma espécie de figura messiânica na narrativa, um Jesus Cristo redneck, que em mais de um momento se sacrifica pelo bem comum, e constantemente se ocupa de questionamentos existenciais super profundos, como a suposta natureza transcendental do nosso espírito, o conceito de certo e errado, etc, enquanto produz referências constantes ao Novo Testamento seja com ações ou palavras (a começar pelas iniciais JC).

Uma das grandes obras de arte da literatura americana do início do século 20 e de todos os tempos, ‘The Grapes of Wrath’ nos permite ressignificar aspectos básicos de nossa vida como a própria democracia, individualidade & coletividade em tempos de repressão, diferentes linhas de pensamento político e a condição da classe trabalhadora, e uma série de outros aspectos fundamentais, que só a perspicácia do gênio, viajante curioso, observador social sagaz que foi John Steinbeck poderia nos proporcionar.

Amarei para sempre essa maravilha.

domingo, 29 de maio de 2016

Não Deixe Suas Opiniões Políticas te Transformarem num Canalha

A polarização política no Brasil está chegando a um ponto inconsequente. Têm dividido opiniões em coisas que todos deveriam pensar da mesma forma. Sem relativismos, sem problematizações (e olhe que eu sou de humanas!).
Se uma pessoa é estuprada, não há debate, não há opinião possível. É abominável e pronto. A garota estuprada poderia, no momento do ato, ter estado fora de casa a mil anos, nua, no meio da rua, com duas AK47 nas mãos, bêbada, drogada, ou mesmo ~pedindo~ pra que fizessem isso com ela. Alguém deveria ter dito "ela não sabe o que está fazendo, vamos levá-la pra casa". Não é sob esse tipo de circunstância que se faz sexo com alguém. Se isso te parece absurdo, você é parte do problema, simples assim.
Quando um homem tem seu celular ou relógio caríssimo roubado, não se critica o consumismo que o leva a gastar R$4000 num iPhone ou R$400 numa camisa Ralph Lauren. Critica-se exclusivamente a tal criminalidade aparentemente inerente aos pobres, tudo da forma mais essencialista, maniqueísta e perversa possível. Essa é a prova fatal de que a violência é menos grave quando atinge uma mulher ao invés do seu patrimônio.
Ou não?
Aparentemente vale tudo pra escapar do cerne das questões quando elas realmente ameaçam uma estrutura qualquer, basta que esta seja confortável para um determinado grupo. É o que acontece quando querem transformar o debate sobre o golpe e a ditadura militar no Brasil num problema linguístico. Não importa se foi "revolução ou golpe", "regime ou ditadura", importa que pessoas foram torturadas, mortas, levaram choque em sua genitália, sumiram das suas famílias pra sempre, pessoas não podiam se expressar, havia corrupção ~sim~ e a economia foi milagrosamente para a lama. Isso é maior que qualquer embate léxico.
Fico de cara.
Em 2016, não basta entender o que significa "cultura", o que quer dizer "estupro", mas não conseguir traduzir socialmente o que significa "cultura de estupro", e com isso transformar uma questão séria e ~real~ numa questão idiota de vocabulário. Covardia ou cinismo? Estudar e querer saber de verdade ainda valem a pena. A internet é um oceano de água doce com pessoas morrendo de sede na praia.
A polarização política do Brasil chegou a um ponto que, se uma garota é estuprada por 30 caras, e as feministas se revoltam, bem feministas geralmente são de esquerda, e esses papos de direitos humanos são coisa de maconheiro, eu não posso concordar com um missangueiro petralha. Então a culpa é da menina.
?
As duas perguntas inevitáveis são:
1) O quanto menos culpa a menina teria se o shortinho custasse R$500 e ela fosse abordada voltando pra dormir na zona sul?
2) Porque será que causas como a das mulheres estupradas encontram afago no posicionamento de simpatizantes acéfalos dessa esquerda desmoralizada, e apenas pau e pedra entre os defensores da família e bons costumes?
A quem quiser continuar achando que os temas de redação do ENEM não passam de doutrinação descarada e desnecessária, ou quiserem mais uma vez, transformar a pergunta 2 numa questão semântica sobre a relação controversa "história da esquerda x direitos humanos", tudo da forma menos pragmática, menos 2016, menos contextualizada, mais erudita, mais simplista, mais kataguirística, mais bolsonarística possível, fiquem à vontade. Só não deixe suas opiniões políticas te transformarem num canalha.