terça-feira, 5 de abril de 2011

O Big Brother está te vigiando! - A origem do Grande Irmão

Tá... ok... eu sei que o título é apelativo e serve apenas para chamar atenção para o texto. Foi de propósito, foi mal. A razão, no entanto, é nobre.

Cada vez mais eu tenho a sensação de que se for pra passar (não perder) tempo com literatura ficcional, que valha a pena! Pelo menos tem sido esta minha postura de uns tempos pra cá. E 1984 é um exemplo de literatura ficcional que realmente vale a pena. Tudo bem que é muito fácil chegar aqui e dizer que um clássico gigante como esse é uma boa leitura. Quando George Orwell o escreveu em 1948 (48, 84, sacou?), dois anos antes de morrer, talvez ele não tivesse consciência das proporções que a obra fosse tomar. Ou talvez até, pensando bem, tinha sim, dada a temática da estória e o momento político mundial em que ele foi lançado, em 1949.

Conhecemos Winston Smith que trabalha em um dos ministérios de um regime absolutamente totalitário, no futuro distante de 1984. O Partido, único e permanente, governa Oceânia com um nível de opressão inimaginável. Oceânia, inclusive, é o nome que recebeu a união de vários antigos países formando um super bloco geo-político, que disputa eternamente uma faixa territorial (o norte da África, extendendo-se pel sul da Europa oriental) com outros dois grandes blocos, a Eurásia e a Lestásia.

Esta é apenas uma pequena parte da vasta realidade que Orwell cria em seu romance: há a Novafala, língua criada pelo Estado para reduzir o Inglês a apenas termos extremamente indispensáveis para a comunicação do Estado; recursos tecnológicos que soariam bastante engenhosos para seu tempo, como as teletelas, espalhadas por toda parte, inclusive dentro da casa de cada cidadão, através das quais as pessoas eram vigiadas constantemente pelo Grande Irmão (no original, Big Brother, figura patriarcal simbólica do Partido); as técnicas de Duplipensamento que permitem ao Estado mudar o passado e as noções mais profundas de realidade, através da violação de arquivos oficiais e notícias antigas; entre outros vários elementos, todos de um alto nível de criatividade.

Winston não consegue conter dentro de si um sentimento de revolta contra o Partido, o que o coloca em extremo perigo, pois como ele próprio já deixa claro desde o início do livro (pra que nós não alimentemos quaisquer esperanças de que ele chegue a triunfar - rsrs), "o pensamento-crime não leva à morte, o pensamento-crime é a morte". Não há como escapar - agora ou depois, se você for subversivo, mesmo que a um nível microscopicamente particular, você vai ser descoberto e isso significa a morte, sem qualquer possibilidade de dúvida. Seja sendo pego comprando um diário num bazar ou tendo suas micro-expressões faciais de hostilidade lidas pela teletela, você vai ser descoberto.

Deu pra sentir o drama? Tenso, né? Tudo começa a se descontrolar mesmo quando Winston se descobre loucamente apaixonado por uma colega de trabalho. Sua paixão se divide entre o desejo sexual avassalador que ele sente por Julia e sua vontade inexplicável de ir de encontro ao Partido. E isso me levou a uma reflexão inevitável, que certamente foi intencional da parte de Orwell: levando-se em conta o contexto social de repressão extrema e perturbadora em que este indivíduo vive, até que ponto estes sentimentos podem se confundir? Até onde a atração fatal (nossa, que brega ¬¬) que Smith sente pela voluptuosa Julia é apenas um reflexo de sua transgreção, de seu ímpeto de corromper as regras do Estado? E até que ponto sua vontade de se rebelar, todo seu engagamento político alimentado secretamente são apenas um reflexo de sua sexualidade reprimida por um regime que não permite qualquer tipo de desejo genuíno entre as pessoas? (...) Freud, sempre ele... ¬¬

Outra reflexão subjacente a esta: falando em "ímpeto", como alguém completamene inserido desde sempre, num mundo opressor, que instrui à força todas as pessoas a serem cegamente obedientes ao governo (e com sucesso), pode sentir qualquer vestígio de revolta? Certo que Winston se lembrava remotamente de um passado onde o mundo que abrigava sua infância ainda era o mundo que conhecemos, e essas lembranças, esses traços de afeição (sentimentos criminalizados pelo Partido) podem ter sido a semente da transformação dele. Contudo, essa observação não impede o leitor de se perguntar: existe de fato algo genuíno em nossa natureza, ou o homem é mesmo completamente um produto do meio? Existe de fato, por exemplo, um "impulso natural de justiça" tal que consiga promover em nós uma mudança drástica de comportamento, em momentos de extrema depravação da liberdade individual, mesmo que aquela tenha sido a única realidade que aquele sujeito já tenha conhecido?

Pra mim, 1984 atinge o ponto máximo de profundidade filosófica, e ao mesmo tempo de inventividade literária quando Winston Smith, já nas garras do Partido (eu disse que era inevitável, não reclame do spoiler), tem sua mente completamente despedaçada pelas sessões regulares de tortura física e mental, comandadas pelo temível O'Brien (glacial e cirúrgico em suas colocações). O que é a realidade, afinal? O mundo a nossa volta, nosso passado, as lembranças, tudo isso não é fruto de nossa percepção? A realidade não é, toda ela, um produto de nossa perspectiva? Então controlando-se a mente humana, não controla-se a realidade? Pra nós é fácil dizer "Ora, é claro que não! Tudo aquilo que existe está posto, e isso não dependente da minha vontade", mas imagine-se preso a uma sociedade totalmente diluída nesses processos de deturpação coletiva. Não é tão fácil. :/

George Orwell
Os americanos, na época completamente envolvidos em disputas políticas contra a União Sovética, receberam 1984 como uma crítica ferrenha ao regime totalitário stalinista. O livro, porém, metralha impiedosamente qualquer tipo de regime político absoluto que possa haver. Quando ainda bem antes de ser pego, Winston ouvia em seus sonhos premonitórios a voz grave e gélida de O'Brien dizer "Ainda nos encontraremos no lugar onde não há escuridão", eu entendi que ali, George Orwell, ele próprio, mandava subliminarmente seu recado de esperança para quem quisesse ouvir, apesar do final pessimista da estória. De que mesmo sob o domínio impiedoso do Big Brother, as grandes massas sempre serão mais fortes para superar a pobreza nefasta da ignorância e da superficialidade. (...) Sim, a ambiguidade foi intecional - rsrs.

Um pouco ingênuo? Talvez. Pelo menos nos leva a nos perguntar qual tipo de repressão vivemos hoje. De qualquer maneira, eu prefiro não perder as esperanças, embora o mundo que Orwell queria para seu pequeno filho quando se preocupou em escrever essa crítica social super sagaz, não era bem esse de hoje. Eu sou pai, eu sei bem como é.

16 comentários:

  1. Pra variar, Brilhante.
    Sou fã do Ivan músico e compositor, grande cantador, e agora se revela esse grande crítico das artes.
    menino, existe alguma coisa que voce não saiba fazer?
    Abração mano velho!

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  2. Parabéns ivan, mais uma excelente analise literária, sendo de utilidade publica, pra quem te ler, apresentar um pouco de cultura e história . Confesso que pra mim foi bem instrutivo faço parte da área, e com certeza um dia irei ler um romance de George Orwell, por ser criativo e ao mesmo tempo criticar o governo!!! ele está absolutamente certo a força do povo sempre será maior de quaisquer manipulação, basta abrir os olhos, e sempre manter viva a esperança de um mundo melhor pras futuras gerações...! vlw!

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  3. Marcos Biesek!

    Tem demais! - rsrsrs - por exemplo, beber e não ficar "bêbo". se alguem aprender, me ensine!

    sério agora, muito obrigado pelas palavras, brother! mas n sou nenhum crítico, só um curioso - :)

    Abração!!

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  4. Diego, fico lisonjeado. Muito obrigado!!

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Muito bem,Zitão!

    Texto muito bom,leve e atraente!
    "Tá... ok... eu sei que o título é apelativo e serve apenas para chamar atenção para o texto"

    -Sobre a sua ressalva ,tenho que dizer que foi muito importante o apelo.Esse romance é uma distopia de Eric Arthur(pseudônimo de George Orwell) que retrata muito bem a questão da invasão de privacidade a qual a sociedade estava sujeita na época ,quebrando um dos princípios básicos do direto humano que é a liberdade individual.E apesar dos criadores do reality show "BBB " ,afirmarem não haver nehuma relação relacionada a obra "1984",é inevitavelmente notória a inspiração ,embora os principios intelectuais das duas esteja em patamares distintos a premissa é a mesma :vigiar o alheio, seja ele concedido(BBB) ou não ("1984).

    Um BIG BEIJO

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  7. Ops!

    Correção : Na verdade George Orwell é o pseudônimo usado por Eric Arthur, não o contrário.


    Desculpem ,sou assim mesmo :atrapalhanda.rsrs

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  8. Po, os caras dizem que não tem nada a ver?! Que santa cara de pau né verdade? - rsrsrsrs Mona, bem lembrado, por falar nisso, tenho algumas outras sugestões a fazer relacionadas ao livro:
    no próximo post.

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  9. Sugestões Relacionadas

    -Também de Orwell, Animal Farm (A Revolução do Bichos) de 1945 que tem uma temática parecida, mas satiriza mais diretamente o totalitarismo russo;

    -Brave New World (Admirável Mundo Novo) de Aldus Huxley, que sugere um outro olhar sobre este assunto;

    -A história em quadrinhos V for Vendetta (V de Vingança) de Alan Moore, que é clara e amplamente inspirada em 1984. Inclusive essa ligação fica clara com o fato de que a HQ teve uma adaptação para cinema em 2006, do diretor James McTeigue, em que John Hurt interpreta o despótico Adam Sutler. O mesmo John Hurt, adivinhem só, que interpretou o magro e inseguro Winston Smith na...

    - ...apaptação cinematográfica de 1984, lançada em 1984! O filme foi dirigido por Michael Redford.

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  10. Engraçado como as temáticas que você vem escrevendo por aqui em muito se atravessam com questões que eu venho discutindo em minhas aulas. Recentemente eu baixei 1984 com o intuito de passar para meus alunos. Deixo claro que nao acredito em coisas predestinadas, sou afeito ao acaso. Porém, vejo que essa coincidência se dá pela simples questão que são temas que dizem do nosso presente, do nosso modo de vida atual: drogas, constante vigilância, Freud...

    Bom, falando agora sobre 1984... esse filme é muito legal, a resenha feita por Ivan ta muito legal. Gostaria então de dar minhas contribuições.

    Em 1984 vemos essa sociedade completamente vigiada, um simples gesto facial entra no processo de captura, os pensamentos também sao vigiados, nada escapa ao Grande Irmao. Quanto a isso venho dizer (minha análise) que a ação desse poder vigilante e controlador não se dá, primordialmente, por uma questão de repressão, por interdições. Estas estão presente, mas não são a "essência" do funcionamento dos mecanismos de poder.
    Esses mecanismos não servem só para dizer NÃO, para limitar a vida, senão eles têm um caráter positivo de produção constante de modos de vida ditados pelo regime de verdades da época. Explico melhor... se eles funcionam através de açoes microcospicas (vigilancia de gestos faciais, pensamentos, etc), eles precisam a todo momento se re-inventar para que possam ter essa onipresença. É preciso que consigam funcionar em todos os planos que atravessam a vida, para que tenham sua eficácia. Sendo assim, essa vigilância constante produz um corpo (sujeito) que se reconhece enquanto alguém que deve se submeter a valores ditados. E o grande trunfo do Grande Irmão é fazer com que cada sujeito crie em si uma vigilância sobre si, ou seja, que a todo momento o prórpio sujeito reflita sobre aquilo que pensa ou faz, buscando nisso o mínimo de comportamento que seja proibido ou errado, entao ele se reconhece como alguém que vai contra o BB.

    Coisas não muito diferentes do que temos hoje. Vivemos sobre uma constante vigilância: câmeras em tudo que é lugar; usando o cartão de crédito; acessando a internet; etc...em todos esses momentos somos obrigados a informar quem somos. Ao mesmo tempo sempre que fazemos algo tido como errado (seja ilegal em termos da lei ou mesmo numa questão moral), tendemos a refletir sobre isso nos colocando na posição de sujeito do pecado ou como um potencial criminoso/delilquente. Seria mais ou menos isso, que Gilles Deleuze, filoso francês, chamaria de Sociedade de Controle.
    Outro francês que me ajuda pensar essas coisas é Michel Foucault (já falei dele por aqui). Dentre outras coisas, o Foucault faz um estudo minuncioso sobre as técnicas disciplinares em nossa sociedade moderna (sec XIX). A disciplina se caractrerizava por uma vigilância constate em espaços fechados. A lógica era de controlar o espaço e o tempo dos corpos em locais como fábricas, escolas ou prisões. Mais em um dado momento essa técnica disciplinar ganha as ruas e começa a funcionar a partir da lógica que aparece no 1984.
    Para não me extender mais, fica aqui a dica de leitura:

    Michel Foucault - Livro "Vigiar e Punir"
    Gilles Deleuze - Um texto chamado "Post scriptum sober a sociedade de controle", que tá num livro chamado "Conversações"

    Ivan, que venham mais boas conversas por aqui.

    Abraçao!!!

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  11. Fala, Helmir! Como sempre, fantástica participação, muito obrigado! :D

    Só queria deixar claro que apesar de haver o filme 1984, essa postagem minha foi sobre o livro mesmo.

    Não sabia que Deleuze já havia escrito sobre isso. Já li alguma coisas dele sobre educação, que deve ter tudo a ver.

    E assim, muito bem observado. Um olhar mais profundo revela que a intenção é fazer com que as pessoas passem a vigiar elas mesmas. Ótimo exemplo disso é o personagem Parsons, que é o exemplo mais perfeito do indivíduo já completamente transformado e auto-julgador. Ele SE ENTREGA ao Ministério da Verdade por ter SONHADO que estava numa manifestação contra o partido (Fredu de novo? - rsrs).

    Ótima observação, Helmir. Apareça! :)

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  12. E Helmir, gente, acabo de encontrar uma outra "referência cultural" a 1984: um filme de 2002 com Christian Bale chamado Equilibrium. o filme é de Kurt Wimmer.

    No futuro, um governo facista estabelece uma tirania inabalável. Um homem de dentro do governose revolta e procura combatê-lo. É um filme de ação aparentemente. (...) Bem, vou ver.

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  13. Aaahhh, lembrei de um filme que acho q tb tem a ver com algo dessa discussão: Dogville (Lars Von Trier), com Nicole Kidman.

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  14. Po, eu tenho aqui, mas não vi ainda. Esse cara é muito bom! Já viu o Anti-Cristo? Cabuloso. Como todos os filmes dele, faz pensar muito!

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  15. Enquanto eu lia a resenha ia mesmo me lembrando de V for Vendetta. Não li 1984 e só vi um pedaço do filme, ainda na faculdade (na 1a) - shame on me - mas reconheço que é o tipo de obra daquela lista indispensável para compreender o mundo através do imaginário literário...
    Acho que outro filme brilhante para isso e que demonstra um pouco da "política" da vigilância, também baseado no livro homônimo, é Laranja Mecânica (A Clockwork Orange), qdo Alex DeLarge é adaptado a um novo comportamento.
    Observar essas representações literárias e cinematográficas é ótimo, mas perceber que viver numa cidade planejada originalmente em formato de tabuleiro de xadrez também é uma manifestação de tentativa de vigilância e "limpeza" é igualmente formidável.
    "Vigiar e Punir", como alguém citou aí em cima, é realmente uma obra de referência.

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  16. Oi, Tati! :)

    Ah, eu também tenho várias lacunas imperdoáveis. Nunca vi, por exemplo, "O poderoso chefão". Tá, pode bater - rsrsrs.

    A Laranja Mecânica é um filme formidável, assim como, na minha humilde opinião, TUDO que Kubrick fez.

    Continue apareçendo amigona! :D
    Grande beijo!!

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